Pandemia expõe a verdadeira face da desigualdade digital no Brasil

Por: Aline Laranjeira

Programa do Governo Federal ilustrou a realidade de milhões de brasileiros que não têm acesso ou habilidades para usufruir ferramentas digitais

A pandemia da Covid-19 expôs desafios de velhos tempos no Brasil. Entre eles, a desigualdade digital foi destaque – e o Auxílio Emergencial, medida lançada em abril de 2020 pelo governo federal para conter a crise econômica decorrente dos protocolos de isolamento social, fundamentais para evitar o avanço da doença, ilustrou a dura realidade dos brasileiros desconectados ou sem habilidades quanto ao uso das ferramentas digitais.

Este foi o caso do ajudante de pedreiro Cláudio José dos Santos, morador do município de Taperoá, interior da Bahia. Além de ter sido infectado pelo coronavírus, também ficou sem trabalho neste período. Quando soube do Auxílio Emergencial, no valor de R$600, encontrou uma solução temporária para pagar as contas. Mas, para receber o benefício, precisou da ajuda de um coletivo da cidade, pois não sabia realizar o cadastro no aplicativo. “Fui duas vezes procurar ajuda e passei dois dias até conseguir receber o dinheiro. Também fiquei muito prejudicado, pois tive que passar dezesseis dias em casa porque peguei a doença. Se não fosse o pessoal me ajudando, eu ia ficar sem receber o auxílio. Eu não sabia o que fazer”, conta.

De acordo com dados do último levantamento da PNAD Covid-19, 15 milhões de pessoas não procuraram trabalho por conta da pandemia ou por falta de trabalho na localidade. Os números reforçaram a urgência da medida, que já beneficiou 43,6% dos domicílios brasileiros. No entanto, a falta de preparo das instâncias governamentais para lidar com o acesso à informação tornou o processo de recebimento do valor exaustivo, provocando filas imensas registradas em todo o país. Além desses números, dados divulgados este ano pela pesquisa Tic Domicílios 2019, do Cetic.br, apontaram que o Brasil tem evoluído no acesso à internet, mas ainda há a manutenção da exclusão dos grupos mais vulneráveis. Quase 47 milhões de brasileiros, cerca de 28% da população, ainda segue desconectada, o que prejudica o alcance das políticas de auxílio, voltadas para este público.

Claudius Adriano Bomfim, colaborador do coletivo Mova, que realiza ações sociais desde 2015 em Taperoá, foi o responsável pelo cadastro de Cláudio José dos Santos. Ele comenta que o projeto, no período de pandemia, teve como um dos focos o suporte para cadastro dos moradores do município no Auxílio Emergencial. Segundo ele, a iniciativa seguiu os protocolos sanitários e atendeu cerca de trinta a quarenta pessoas por dia durante o início da medida do governo federal. “No começo do programa, muita gente não sabia usar e faltava informação. Várias não tinham celular e a gente se virava, usando os nossos aparelhos para fazer o cadastro. As pessoas ouviam falar do auxílio, mas não sabiam o que fazer. Percebemos que os moradores iam para a fila da lotérica para entender os procedimentos e voltavam para casa confusos. Começamos a ação para que eles tivessem acesso ao benefício”.

Para a especialista em políticas públicas e gestão governamental, Letícia Bartholo, o governo poderia ter investido, desde o início, em um método de esclarecimento de dúvidas da população. “A partir do Sistema Único de Assistência Social, por meio dos Centros de Referência de Assistência Social, que são quase 9.000 em praticamente todas as cidades brasileiras, seria possível evitar as filas desnecessárias na frente das agências de pagamento do Auxílio Emergencial”.

A barreira do desenvolvimento de aplicativos

Parte das reclamações no coletivo MOVA esteve ligada a problemas no aplicativo, como lentidão no sistema e dificuldade para salvar dados. O projeto também precisou lidar com a deficiência da ferramenta para evitar filas no local de atendimento. “No começo, o aplicativo não era eficiente, então demorava muito na fila de espera para cadastrar ou receber o dinheiro. Algumas pessoas voltavam duas ou três vezes para concluir o processo”, conta Adriano.

Em abril de 2020,  a hashtag #auxílioemergencial foi o segundo tópico mais falado no Twitter, no Brasil. Por meio dela, usuários reclamaram das dificuldades para receber o dinheiro. Bartholo afirma que o desenvolvimento do aplicativo comprometeu a qualidade do serviço público prestado. No entanto, ela acredita que a repercussão midiática e o grande número de reclamações fez com que o aplicativo passasse por atualizações para atender a alta demanda. “Após os primeiros meses, houve melhora tanto no aplicativo, quanto na informação oferecida à população, de forma que estas dificuldades foram, embora não completamente solucionadas, razoavelmente atenuadas.”

A especialista ainda criticou a ausência de um mapeamento das populações mais vulneráveis para o recebimento dos R$600 durante a crise sanitária. “Creio que, desde o advento da pandemia à criação do Auxílio Emergencial, o poder público poderia ter se planejado para encarar o desafio de maneira mais adequada”. Ela acrescenta que, mesmo com planejamento, seria inevitável não haver dificuldades no aplicativo. “Foi uma situação de emergência, em que o poder público se deparou com um contingente de cadastros e pagamentos a serem feitos sem precedente na história brasileira. Mesmo sob mais planejamento, certamente seria difícil fazer o recurso chegar em tempo a mais de 60 milhões de pessoas”. 

O Auxílio Emergencial foi prolongado até dezembro de 2020, em quatro parcelas de R$ 300, e renovado em 2021 em quatro parcelas de valores que variam de R$150 a R$ 375. 

Redução no valor e obstáculos de acesso permanecem

Neste ano, o primeiro depósito, destinado aos beneficiários nascidos em janeiro, aconteceu no dia 06 de abril, entretanto a movimentação financeira só está disponível para aqueles que possuem o aplicativo da Caixa Econômica Federal. Dados da Fundação Getúlio Vargas apontam que 40% dos mais pobres não acessam a internet, indicando que grande parte dos beneficiários, aqueles que estão em situação de maior vulnerabilidade, só puderam ter acesso ao dinheiro para retirada na boca do caixa na última terça (04/05), um mês após a liberação do benefício.

Destinado a trabalhadores informais, autônomos, microempreendedores individuais e desempregados que enfrentam os efeitos econômicos provocados pelo coronavírus, o benefício começou a ser pago em abril de 2020 em três parcelas no valor de R$ 600.

Foto de capa: (Crédito: Arquivo / Agência Brasil)

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