Diante de dois genocídios: o pandêmico e o antinegro

Hoje 13 de maio é dia de lançamento da segunda edição do projeto Rotas para a Liberdade, da Plataforma Conexão Malunga, em que o objetivo é conversarmos publicamente sobre as estratégias de resistência negra no Brasil, por meio da tradição crítica do pós-abolição. Neste momento da pandemia de Covid-19, acontecimentos recentes destacam que estamos imersos a pelo menos dois genocídios: o genocídio da pandemia e o genocídio antinegro. Eles não são os únicos, pois ainda presenciamos o genocídio indígena, mas trazemos à tona os outros dois tendo em vista o massacre recente no Rio de Janeiro.

Nós da Conexão Malunga, no compromisso dentro da tradição de mídia negra, repudiamos a ação da Polícia Civil do Rio de Janeiro, que permitiu a maior chacina na história da capital carioca, segundo levantamento do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da plataforma Fogo Cruzado, a Chacina do Jacarezinho, com 29 mortos segundo dados oficiais, mas com contagem maior segundo moradores da região.

Solidarizamo-nos com toda população de Jacarezinho, pois o que acontece na comunidade carioca, nos afeta aqui no Nordeste, já que evidencia o genocídio antinegro que continua em operação no Brasil, em que extermínios acontecem via massacres, mas também desencadeiam dores emocionais e físicas às famílias que deparam-se com a morte violenta.

Do genocídio da pandemia, explicamos que não é somente causado pela virulência do coronavírus Sars-cov-2, mas é operado principalmente pela gestão do poder executivo federal e seus apoiadores ao recusar 70 milhões de vacinas, oferecer hidroxocloroquina como solução medicamentosa, mesmo na falta de oxigênio nos hospitais, incentivar aglomerações e permitir o sucateamento do Sistema Único de Saúde. É aquele que opta pelo corte de verbas destinadas à direitos básicos para implementar uma política de auxílio emergencial que não garante a dignidade humana, esbarrando tanto no valor ínfimo inicial de R$600 agora reduzido para R$250 reais, quanto à deliberação de ser um serviço prioritariamente online, enquanto vivemos a face mais desigual do que “resta” do hiato digital.

Já o genocídio antinegro é uma variável fundante da experiência brasileira. Como denunciado por Abdias do Nascimento, o genocídio é “o uso de medidas deliberadas e sistemáticas (como morte, injuria corporal e mental, impossíveis condições de vida, prevenção de nascimento) calculadas para a exterminação de um grupo racial, político ou cultural, ou para destruir a língua, a religião ou a cultura de um grupo”¹.

No ano passado, na primeira edição do Rotas Para a Liberdade, conversamos sobre como os aspectos políticos da vigilância desembocam nas tecnologias digitais e minam a vida negra. Não muito longe dali vimos as manifestações pela vida de George Floyd, afro-americano assassinado pela polícia de Minneapolis no dia 25 de maio, que desencadeou uma onda de protestos nos Estados Unidos e no restante do mundo, contra o racismo.

O genocídio antinegro evidencia-se também quando a população negra precisa encarar, no período de uma data memorável, exemplos cruéis do extermínio. Emblemático, o assassinato de João Alberto Freitas numa loja do Carrefour em Porto Alegre, que segurou nossa respiração na manhã do dia 20 de novembro de 2020, dia da Consciência Negra, momento crítico de celebração das lutas negras no Brasil. Hoje, 13 de maio de 2021, mais uma vez a população negra no Brasil coloca-se em risco para marchar nas avenidas pela defesa dos valores democráticos, contra a fome, contra os extermínios e contra as ineficácias governamentais de combate à pandemia de Covid-19. 

Do nosso trabalho na Conexão Malunga como plataforma que também abarca o Jornalismo, a ideia de cobertura de chacinas em tempo real é assustadora demais para ser naturalizada. Chamamos então à responsabilidade a mídia branca tradicional brasileira, que tem uma trajetória histórica em destituir o poder da população negra através de imagens de dor e sofrimento, utilizadas para justificar as políticas de Guerra às Drogas. Repudiamos veementemente os veículos jornalísticos que optam por enquadrar a chacina em Jacarezinho como operação policial, transformando os moradores em suspeitos, ao lançar mão do imaginário racista que associa as favelas ao criadouro do crime. 

Em atenção ao que se abre aqui em nossa vida pública, a Conexão Malunga chama a comunidade a refletir sobre o porquê de neste momento permitirmos que mais uma vez a branquitude perpetue a barbárie das opressões e não seja responsabilizada, através da destituição de seu poder. Em outras palavras, porque basta um corpo negro para justificar as execuções que vimos em Jacarezinho e, mesmo diante do massacre, a brancura continuar sendo atrelada a humanidade, inteligência e governança de nossas vidas. A colonialidade que pulsa nas redações jornalísticas, no alto escalão governamental, seja do executivo ou do judiciário, é evidência suficiente para que diante da luta pela democracia na pandemia, racismo e outras opressões não sejam encaradas como matérias que podem ser postergadas. 

¹ NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 1

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